terça-feira, 22 de dezembro de 2015

HÉLIO GRACIE - O SURGIMENTO DE UMA LENDA

Caçula da família, Helio Gracie era diferente de seus irmãos. Depois de ter nascido saudável, entre os seus nove e 15 anos tornou-se um menino frágil e com problemas de saúde recorrentes. Hélio passara sua infância inteira na pior fase da financeira da família. No quarto ano do ensino fundamental, fora retirado da escola por sua família não ter condições de arcar com os custos do ensino particular, e ao mesmo tempo sua mãe Cesalina considerava uma desonra ver seu filho andando pela vizinhança com o uniforme de uma escola pública. Hélio vivia uma angustia profunda, sendo pela falta de um referencial paterno ou pela busca de uma maior atenção de seu irmão Carlos o qual por estar sempre focado nas necessidades financeiras da família e no aprimoramento técnico dos irmãos mais velhos não dava atenção ao menino. Hélio possuía uma saúde muito frágil, freqüentemente desmaiava sem motivo aparente, e acabou sendo impedido de praticar qualquer atividade física pelo médico da família. Assim, o menino ficava cada vez mais afastado da realidade dos irmãos, pois embora quisesse muito participar da rotina de treinos era repreendido toda a vez que tentava se aproximar do tatame. (GRACIE, 2008) "A infância de Hélio deve ter sido tão difícil e dramática que ele apagou da memória os fatos até o momento que foi morar com Carlos,a ponto de depois de adulto não conseguir se lembrar de praticamente nada do que viveu nos seus primeiros onze anos de vida. Não sabemos se algum fato especifico causou a aminésia. É provável que uma soma de pequenos fatores tenha transformando sua infância num tempo de vida que não merecia ser lembrado. A diferença de idade entre ele e Carlos, onze anos,contribuiu para que o irmão mais velho não lhe desse muita atenção até levá-lo para morar com ele, acentuando ainda mais o sentimento de abandono e de carência que Helio devia sentir de uma referencia paterna." (GRACIE, 2008, p.68) Mesmo com todo este contexto desfavorável, Hélio tinha um objetivo, assemelhar-se ao seu irmão Carlos o qual era sei herói e conquistar o seu respeito e reconhecimento. O menino, por não ir a escola assistia a todos os treinamentos e mentalmente repetias as posições de ataque e defesa. Aos poucos, quase que despercebido e por estar sempre pronto a cumprir qualquer tarefa solicitada pelos irmãos mais velhos Hélio começou a participar dos treinamentos. Mesmo repreendido por Carlos, seguia sorrateiramente integrando-se a rotina dos seus irmãos. Quando Carlos se deu conta, Hélio já tinha se tornado um de seus alunos mais aplicados e resolveu fazer vistas grossas às restrições médicas do irmão. Certa tarde, na nova academia, Hélio com quinze anos então recepcionou um importante cidadão carioca da época, Mário Brandit funcionário de alto escalão do Banco do Brasil que havia contratado Carlos para uma serie de aulas particulares. Carlos não estava presente e Hélio preocupado em sanar a falha do irmão se ofereceu a Mario para iniciar o treinamento. Sem opção Mario aceitou a oferta de Hélio. Passado praticamente todo o período do treino, Carlos chegou muito preocupado com o fato de ter se ausentado do compromisso e ao procurar Mário para justificar o atraso, foi surpreendido pelo mesmo que elogiou a postura de Hélio como professor e pediu que o mesmo substituísse a Carlos em seu treinamento a partir dali. Carlos impressionou-se com a reação de Mario que havia enxergado em Hélio uma maior didática para ministrar as aulas. A partir de então, Carlos reconheceu em Hélio um talento tanto para ministrar aulas quanto para a competição e passou a dar a ele a mesma atenção que dava a George e Oswaldo. Logo Hélio superou tecnicamente seus irmãos e tornou-se o principal referencial técnico dentro da academia Gracie. (GRACIE, 2008) Hélio, ao mesmo tempo, ganha uma profissão e um problema. Magro e fisicamente mais fraco que os irmãos ele não tinha a força necessária para executar determinadas posições e acompanhá-los. Conforme ele mesmo confessara quando questionado sobre como havia criado a Jiu-Jítsu Brasileiro; “[...] Não sei, porque não foi feito com inteligência, mas com instinto. É como você sentado, cansa da posição e cruza a perna. Sem pensar. Da mesma forma aperfeiçoei a técnica, sem mérito mais porque era preciso.” (GRACIE apud ATALLA, 2001, p. 27) Logo, Hélio começou a participar das lutas e conquistar grande atenção por parte de espectadores e imprensa, pois apesar de esguio e leve (Hélio pesava sessenta quilos) ele sempre derrotava seus adversários, mesmo sendo eles vinte ou trinta quilos mais pesados que ele próprio, pois a partir de seu talento natural desenvolvera uma técnica própria a qual ninguém conhecia e que dava a ele um grande diferencial era o Jiu-Jítsu Brasileiro ou Brazilian Jiu-Jítsu. A partir da visibilidade conquistada por Hélio, o Jiu-Jítsu tornou-se uma febre carioca. A academia possuía filiais por toda a cidade e os eventos nos quais Hélio e os irmãos participavam ganhavam notoriedade no Brasil e até mesmo no exterior. O sobrenome Gracie havia se tornado uma marca, a qual carregava consigo o status de vitoriosa e formadora de cidadãos de bem. Pode-se citar algumas personalidades nacionais que passaram pelo tatame dos Gracie como o arquiteto Oscar Niemeyer, o ex-presidente da república João Batista Figueiredo, e o pioneiro da televisão no Brasil e magnata da Comunicação entre as décadas de 1930 e 1960 Assis Chateaubriand, o qual dava ao Jiu Jítsu uma atenção especial por ser amigo pessoal da família Gracie e um entusiasta do esporte. "[...]Chateaubriand foi um magnata das comunicações no Brasil entre o final dos anos 1930 e início dos anos 1960, dono dos Diários Associados, que foi o maior conglomerado de midia da America Latina, que em seu auge contou com mais de cem jornais, emissoras de rádio e TV, revistas e agência telegráfica” (Disponível em: - acesso em 02/11/2011) A visibilidade que os Gracie e o Jiu Jítsu conquistaram na metade do século passado, especialmente sobre o apoio de Assis Chateaubriand fazia a imagem do Jiu Jítsu de um ideal, objetivo e meta pessoal de muitos jovens. Gracie (2008) narra dois fatos impressionantes que mostram a imagem que o Jiu Jítsu possuía na época e a visibilidade que as grandes mídias ofereciam a este esporte fazendo do mesmo um elemento participante até mesmo das primeiras transmissões da televisão no Brasil: E foi assim, que no dia 20 de janeiro do ano seguinte, dia de São Sebastião, padroeiro da cidade do Rio de Janeiro, às 12:49m, o aparelho de TV que Oscar trouxera dos Estados Unidos estava sintonizado na canal 6 no instante em que no alto do Pão de Açúcar, o presidente Eurico Gaspar Dutra em um de seus últimos atos oficiais, acionou o transmissor. A rede Tupi de Televisão da cidade maravilhosa estava no ar. [...] o locutor Luis Jatobá anunciou as atrações da festa: Mazzaropi, até então um comediante do rádio vindo do circo, o grupo vocal “Garotos da Lua” do qual participava João Gilberto sete anos antes de inventar a Bossa Nova, a Orquestra Tabajara, big-band do maestro Severino Araujo, e a Academia Gracie versus cinco “trabalhadores da resistência” do Mercado Municipal da Praça XV, a partir das 22 horas, numa serie de lutas em homenagem ao Diários Associados. Era mais um confronto entre a arte suave e a força bruta para mostrar a eficiência do Jiu-Jítsu. Os estivadores que se gabavam de “jogar pingue-pongue com fardos de 100 quilos” estavam certos da vitória. O público que aguardava em casa a transmissão ao vivo viu o 1,80 metro de altura e aos 107 quilos de músculos de Duarte Enéias, de 20 anos, serem jogados para o alto por golpes de alunos da Academia Gracie, muito menores e mais fracos.[...]Vale ressaltar que a Tupi de São Paulo, havia exibido em dezembro o primeiro tele curso da história da televisão brasileira:um curso de Jiu Jítsu ministrado por Carlos e Helio Gracie. (GRACIE, 2008, p. 250 e 251) Mas o maior exemplo da importância que o Jiu Jítsu gozava na época, foi a mítica visita em 1951 ao Brasil,da equipe japonesa de Jiu Jítsu, a qual contava com a participação dos respectivamente campeão e vice-campeão mundiais da modalidade, Kimura e Kato, patrocinada pelo Jornal São Paulo Shimbum. (GRACIE 2008) A família Gracie na época já havia construído seu império esportivo, e Hélio já pensava em abandonar os ringues, mas a pressão da mídia e o desafio lançado pelos japoneses mexeu mais uma vez com o espírito combativo de Hélio, que então já estava com 39 anos de idade e cinco dias antes havia fraturado duas costelas. Kimura (o campeão mundial) ao conhecer Hélio, desmereceu o adversário frente a sua aparência frágil. Negou-se ao combate e destinou Kato ao enfrentamento. Então, no dia 06 de setembro de 1951 no novíssimo Estádio Mario Filho (o Maracanã), Kato, 15 quilos mais pesado e 17 anos mais jovem enfrentava a já lenda carioca Hélio Gracie. A luta, após três raunds de dez minutos acabou empatada, porem o Jornal O Globo na manhã seguinte estampava a seguinte noticia: [...] Assim, chegamos ao fim do primeiro raund, sem ver o japonês cumprir sua promessa de vencer facilmente e Hélio, absolutamente frio já conhecedor dos movimentos de seu adversário. [...] e Kato só não foi derrotado graças ao recurso de levar o antagonista para fora do tablado, o que lhe valeu ser vaiado pela assistência” (O Globo, 1951 apud ATALLA 2001) A comitiva japonesa e o próprio Kato não aceitaram o resultado da luta e solicitaram uma revanche que foi realizada em São Paulo, no Estádio do Pacaembu no dia 29 do mesmo mês. Já conhecedor da repercussão proporcionada pela imprensa, e especialista na autopromoção da sua imagem, Hélio declarou: “[...] Sei o que vou enfrentar. Estudei devidamente as possibilidades de Kato, e lhe faço uma advertência: a vitória desta vez, está nos meus planos” (ATALLA, 2001, p. 27) E realmente a vitória se seguiu. O Jiu Jítsu Brasileiro havia superado o seu precursor. A noticia da vitoria de Hélio sobre Kato em São Paulo correu o planeta e fez de Hélio mais uma vez o proeminente herói de uma nação. Imediatamente após ser declarado vencedor da luta, Hélio é surpreendido pelo compatriota de Kato, Kimura (então campeão mundial) que invadiu o ringue e desafiou Hélio ali mesmo, chegando a declarar que começaria a luta deitado e que se o brasileiro resistisse a mais de três minutos lhe entregaria o titulo de campeão do mundo. Foi assim, que no dia 23 de outubro daquele mesmo ano, novamente no Estádio do Maracanã, com o recorde absoluto de bilheteria para um evento de luta (trezentos e trinta e nove mil cruzeiros) e sobre o olhar do vice-presidente da república Café Filho, Hélio Graice enfrentou o quarenta quilos mais pesado e campeão do mundo Kimura: (ATALLA, 2001) [...] um Kimura ostentando físico e preparo de atleta.Senhor absoluto do Japão. E ainda assim, o Gracie resistiu mais de 13 minutos (uma luta de judô nas Olimpíadas tem cinco minutos, e de wrestling, no Maximo nove) ao pique da máquina nipônica, quando foi pego pela maior arma do oponente, uma torção de braço que Carlos pensou que pudesse aleijar o irmão e o fez jogar a toalha. (ATTALA, 2001, p. 31) Findava ali, frente a desistência por parte de seu córner a carreira de lutador de Hélio Gracie mas não sem antes mudar a história das artes marciais. O Jiu Jítsu era conhecido e respeitado em todo o país, e o mundo inteiro já olhava para aquela nova maneira de se lutar com respeito e admiração pois a partir do seu emprego, o fraco poderia vencer o forte, coisa até então nunca proporcionado por nenhuma outra forma de combate. Ao sair do Maracanã, Hélio transmitiu a imprensa que sua carreira de lutador chegava ao fim. A partir de então, começou a trilhar o caminho do seu próprio clã junto com seus nove filhos os quais também escreveram seus nomes na historia mundial das artes marciais. (ATALLA, 2001) Neste momento, é importante salientar como a imagem e a visibilidade que os Gracie conquistaram para o Jiu Jítsu fora fundamental para o crescimento e a consolidação de uma modalidade marcial que se iniciou na sala de visitas da casa de Carlos e acabou por bater todos os records de arrecadação na luta de Hélio e Kimura no Maracanã. Fica evidente o poder midiático nesse processo de construção de uma imagem vencedora e defensora dos valores nacionais. Também é possível verificar o interesse por parte das grandes mídias em levar a público aquilo que é capaz de se transformar em espetáculo tornando-se natural a sua aceitação por parte do público, garantindo a audiência às grandes mídias e as viabilizando comercialmente. [...] na medida em que acontece a “autonomização” do espetáculo, desprendendo-o de alguma relação com o transcendente, e a sua “libertação” dos limites impostos pelo espaço geográfico, através dos aparatos sócio-tecnológicos de comunicação, pode-se pensar no espetáculo como “principio organizador da vida [...] situação na qual o fato de algo ser mostrado para um público espectador se torna crescentemente interpretado como precondição (e critério de avaliação) da sua importância [...] (Albuquerque, 1994, p. 19) Essa questão do espetáculo e a capacidade tecnológica incorporada as grandes mídias podem ser percebidas na seqüência do trabalho quando fala-se do surgimento do M.M.A , curiosamente criado pela família Gracie, e sua popularização por todo o planeta o tornando um dos esportes mais assistidos da atualidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário